sexta-feira, 28 de maio de 2010

Conto de cantos

Sempre adorei o cheiro de gasolina.

Parado no posto, dentro do carro, com minha mãe ao lado, lembrava-me de minha infância. Nas férias, quando era pequeno, meu pai sempre me levava ao parque, e todas as vezes, sem exceção, parávamos em um posto – sempre o mesmo -, e, assim que ele ia pagar o combustível, eu já sabia o que viria depois. E lá vinha ele, sorriso no rosto, com dois ensolarados quindins nas mãos, comprados na pequena doceria ao lado do posto. No parque, ríamos, jogávamos futebol e sujávamos um ao outro. Depois, exaustos, felizes e imundos, voltávamos para casa, onde havia sempre um chá com bolinhos à nossa espera. A memória era tão forte que quase pude sentir o gosto dos bolinhos no chiclete de menta que mascava. Mas hoje está tudo diferente. No lugar do parque e da doceria, grandes arranha-céus, minha mãe já não tem tempo para os bolinhos e uma das muitas viagens do meu pai não o trouxe de volta.

Percebi que não estávamos mais no posto quando passamos por uma lombada. Minha mãe falava, e, pelo jeito, achava que eu a ouvia há algum tempo:

-... e depois eu vou no shopping ver se acho alguma coisa pra comprar, que eu de TPM. Vai sair hoje? Não quero que você beba muito nem que me acorde quando chegar! Ouviu? E quero que você comece a levantar mais cedo, que eu preciso da sua ajuda. – paramos no sinal – Não estou gostando disso de você acordar às dez todo dia. Não tem que fazer nada pra faculdade?

Saí do carro. Podia sentir o sangue subindo à têmpora. O buzinaço dos carros representava que minha mãe ainda não tinha saído. Não olhei para trás. Nunca olharia.

Virei à esquina e notei a primeira porta à minha direita. Ela representava bem o estabelecimento como um todo: era antiga, suja e malcuidada. A única janela que dava para a rua estava com suas tábuas quebradas e as teias tomavam o lugar dos vidros. Acima da porta, havia a inscrição, em tinta branca: “República dos Bichos”. Isso me instigou e atiçou algo em minha memória, mas não consegui me lembrar completamente. Entrei. Minha alergia à poeira quase não me deixou respirar. O lugar estava abandonado, entulhado, e a pouca luz que entrava não me deixava ver completamente seu aspecto. Saí.

Olhei para o relógio e vi que estava quase na hora da minha aula. Comecei a andar em direção à faculdade, sentindo o nauseante Sol bater em minha nuca, quando trombei com alguém que eu não parei para ver quem era. De minhas costas veio o grito. A voz era de homem. Não olhei para trás. Nunca olharia. Mais um grito. Andei mais rápido. Passei pelos dois quarteirões que faltavam quase correndo.

Chegando à minha sala, sentei no meu lugar habitual, ao fundo.

- Hoje é dia de redação! – disse a professora, com sua voz fina e irritante. – Sim, redação. Vocês escreverão sobre o que sonharam na noite passada.

Não aguentei. Levantei a mão:

- Sonhos? – minha voz saiu rouca – Que sonhos?

6 comentários:

  1. uau, você escreve muito bem. Muito legal esse seu blog, mesmo ainda tendo poucas postagens.

    ResponderExcluir
  2. que lindo! Adorei, realmente valeu a pena ter trabalhado no conto. Está muito bom!

    ResponderExcluir
  3. Muito bom, mesmo. cara, o nosso inconsciente é absurdo, sensações e sinestesias, haha. gostei :)

    ResponderExcluir
  4. "A única janela que dava para a rua estava com suas tábuas quebradas e as teias tomavam o lugar dos vidros." #cemuni5feelings

    Teu blog ta pica das galaxias! Você consegue descrever uma cena literária e cinematográfica, em 1ª e 3ª pessoa, muito envolvente! Deve exercitar mais isso!

    ResponderExcluir
  5. Puxa, mãe de TPM é mesmo complicado...

    ResponderExcluir