sábado, 5 de novembro de 2011

Sobre botas, portas e cores

“São 107 passos até o silêncio”, disse-me ela certa vez.

Pela primeira vez, as paredes metálicas não parecem estar se fechando sobre mim por todos os lados. A cama, pequena demais para mim como sempre, traz descanso como nunca. O teto branco parece mais limpo, como se o tivessem esfregado durante a noite.

Só agora percebi que já trouxeram minha comida. Ela paira intocada em sua bandeja, no chão, perto da saída. Não, não vou comer.

Ouço um barulho, de bem longe – barulho de botas de couro batendo no chão. Botas de couro preto, com uma grande e alta sola de borracha. Será hoje? Será hoje, finalmente?

Não aguento e me levanto da cama, sem sequer um ruído. Me aproximo das barras de metal, mas ainda assim não consigo enxergar o dono das botas. Volto minha atenção para uma libélula pousada em cima da torneira da pequena pia que fica no canto. É a única coisa do aposento que ainda conserva alguma cor. Pego seu verde em minha mão direita e levo até a janela. Subitamente, ela voa por entre a grade. Não olha pra trás.

“Voe”, penso. “Daqui a pouco estarei como você: com cores novamente”.

Percebo que o barulho das botas parou. Quando olho para trás, vejo que o motivo é simples. Elas chegaram ao seu destino. A minha cela. “Chegou a hora”, diz a voz.

Meu rosto se abre em sorriso. Dou meu último adeus à cama e caminho pelos corredores mal iluminados com o som das botas ao meu lado esquerdo. Só olho para frente, para a porta cinza escuro que se aproxima aos poucos. Nem ligo para os barulhos que surgem durante o percurso, e só paro quando chego perto o bastante para tocar a superfície metálica à minha frente.

A porta se abre e a luz me inunda. Com a cabeça virada para cima, para o azul que há muito não via, ando em linha reta em direção à parede marrom do outro lado do pequeno pátio. Minha vontade é de deitar no chão apenas para contemplar o azul, mas sei que ele ainda não é meu. Mas será.

Paro a poucos metros da parede e me viro. A possibilidade do azul se resume a um pequeno objeto em uma mão à minha frente, à qual olho insistentemente.

A libélula corta o ar bem próximo aos meus olhos e me distraio. Não percebo quando a arma dispara em minha direção.

domingo, 8 de maio de 2011

Decreto dos mil mares

Pelo decreto dos mil mares de número incontável do dia 7 de maio de 2011, fica decidido que:

A partir de agora, a ânsia de guiar o barco sozinho será tão grande quanto a vontade de navegar ao lado dos camaradas de mar.

§ 1º: todo e qualquer marinheiro que desrespeitar tal lei será jogado não aos tubarões, mas à vergonha do porão do navio;

“Para tornar verdadeiro o decreto, marinheiros, levantem seus copos. Bebam, bebam e bebam, que hoje o mar é nosso por inteiro. Este, pelo menos.”

quinta-feira, 31 de março de 2011

Noite em claro

Enquanto o ônibus seguia cambaleando pela noite, eu tentava me concentrar no que tinha que fazer. Precisava me concentrar.

O silêncio reinava absoluto dentro do veículo, quebrado apenas por eventuais encontros dos pneus com os poucos buracos das ruas. Eu estava sentado bem no meio do ônibus, na poltrona de corredor exatamente em frente à porta de saída. Além de mim, do cobrador e do motorista, havia três pessoas no ônibus: um casal, nas últimas poltronas, e um homem dormindo encostado na janela, duas cadeiras à minha frente. Em minhas mãos havia um pequeno objeto embrulhado em papel verde-musgo, a exata cor do assento em que estava sentado. Meus olhos estavam fixos na porta de entrada. Já estava há mais de 20 minutos no ônibus e eu sabia que deveria estar chegando.

Após mais algumas ruas de espera, finalmente o ônibus parou, mais abruptamente que o normal, e nele entrou o homem por quem eu estava esperando. Mais baixo que a média e com uma barbicha em tanto desgrenhada, não aparentava ter mais que 30 anos. Após pagar a passagem e girar a roleta, encaminhou-se diretamente até mim. Seus movimentos eram meio mecânicos, como se os tivesse ensaiado antes de subir os degraus do ônibus. Sem tirar meu olhar de seu rosto, permiti que passasse pela minha frente e que se sentasse na poltrona ao meu lado, na janela. Assim que o fez, evitando meus olhos, tomou algumas longas golfadas de ar.

Pouco depois, percebendo minha insistência em observá-lo, meteu a mão no bolso, tirou de lá um bolo de notas e me deu. Sem contar, entreguei o embrulho a suas inseguras mão estendidas. Ele pegou e guardou sobre as pernas, envolvendo-o com os braços com um sentimento quase paternal.

Tudo certo. Tudo como combinado.

Mas, quando eu me levantei, apoiando minha mão no assento, e dei sinal para o ônibus parar, ele me olhou, numa mescla de assustado e indagador. Aquilo não estava correto. Não estava no script. Desci antes de qualquer oportunidade de ele dizer algo.

Assim que pisei na rua, fui engolfado pelo ar frio da noite. Enquanto observava a partida do ônibus, peguei meus cigarros e meu isqueiro, de prata. Dei uma última olhada para o veículo. Dentro dele, a poucos metros de mim, um contador regressivo zerava-se. Abri a tampa do isqueiro e chamas irromperam debaixo da poltrona em que há pouco eu estava sentado. No mesmo momento em que a primeira baforada de fumaça saiu da ponta do cigarro, a carne do homem sentado no ônibus começou a tostar diante da progressão do fogo no veículo. Comecei a andar no sentido contrário, e, antes de meu terceiro passo, as chamas já haviam alcançado o cobrador e todos os passageiros do ônibus. Neste momento, o motorista percebeu o que estava acontecendo, parou o carro e tentou fugir pela porta da frente. O fogo o alcançou na altura do primeiro degrau, e suas costas foram engolfadas pelo rubro vento que neste momento estava chegando ao tanque de combustível do ônibus. O vento da morte. O motorista saiu para a rua e se jogou na calçada, para a noite fria e estrelada, esperando por uma ajuda que nunca chegaria. Poucos segundos depois, o motor explodiu e uma grande cratera de fogo se formou no meio do asfalto.

Não muito longe, em uma rua paralela, um homem magro, de blusão e tênis vermelho, pagava um táxi com um bolo enorme de dinheiro, pedindo para o motorista ficar com o troco, e soltava a última baforada de seu cigarro antes de jogá-lo fora, na calçada.

quarta-feira, 9 de março de 2011

De corda

Sozinho, aqui, neste terreiro de anjos feridos, consigo finalmente parar.

Olho para cada um de vocês e vejo a imagem distorcida do meu espelho.


Sozinho, aqui, a poesia que o bravo Mar sussurra em meus ouvidos já não me escapa mais.

Eu ouço e ouço, de um lado para o outro, toda a História.


Sozinho, o que vale é esse Céu que você deixou comigo.

Aqui, sozinho, eu corro cada vez menos de mim.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Longe

Deito-me para a pior noite da vida.
- ou seria melhor chamá-la "a noite da vida"?

Até a chuva, minha melhor e maior amante, tornou-se monótona agora.

O destino resume-se a quantas vezes a rede vai me aguentar ouvindo a água bater, bater e bater na areia.
Pela primeira vez, não tenho medo nem da solidão no escuro.

Agora só tenho medo e a companhia da saudade.
- cadê você?

terça-feira, 1 de março de 2011

Balas

Que venham todos vocês, lobos
ou fantasmas.

Hoje estou munido da minha saudade.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Vem

- Espere. Ouça. Vamos, ouça. Reconheceu? São os lobos. Estão voltando. E trazem poeira.