terça-feira, 13 de julho de 2010

Sobre vidas

As cabeças, boiando na lama do brejo, olhavam para mim. Sempre adorei essa cena. Ficavam ali, hora viradas para baixo, hora para cima. Aos lados, a pouca água manchava-se de sangue. Alguns pedaços de corpos também eram visíveis por meio do mato, retratos das constantes torturas do lugar. Isso é o que ninguém vê, o que ninguém sabe. Ou melhor, quase ninguém. Porque eu sei. Eu vi. Sou único na aldeia.

Do outro lado do lamaçal erguia-se a grande muralha do castelo. Apenas uma janela dava para o lugar onde me encontrava: a mais alta. De onde eu estava, era possível ver alguns dos muitos ornamentos de ouro em seu teto, refletindo o Sol poente. Após e abaixo da grande fortaleza, estendia-se a aldeia. A essa hora, todos já deveriam estar em suas casas, começando a se recolher para dormir. Os telhados, normalmente marrons da cor do barro, tingiam-se de dourado à luz solar. Nunca mais veria isso. Graças a Deus.

Ouvi passos. Era ela. Cabelos esvoaçantes, o rosto meio tapado pelos panos e o astuto olhar cinzento fixo em mim, estava mais linda do que nunca. Quando me abraçou, disse, baixinho:

- Vamos logo.

Concordei com a cabeça e comecei a caminhar para longe do lugar em que morei em toda a minha vida. Dei uma última olhada para trás, para a janela, no alto. Naquele cômodo encontrava-se o meu maior inimigo. “Adeus, tirano”, pensei. “Sua filha vem comigo. Volto depois para buscar a última coisa minha neste lugar. Sua vida.”